O essencial é visível aos olhos...


...mas nem toda a gente o vê.

(e que me perdoe Saint-Exupéry, por ter de o contrariar)

Quando Doe me entregou aquele curioso presente, fitei-o com os mesmos olhos perguntadores que admiravam as intermináveis carreiras de formigas (inquietantes pelo seu determinismo servil). Enfim, sem saber muito bem o que dizer... sorri, apenas. 

Um relógio sem ponteiros. 


Autor Desconhecido

"Para que serve?" - investiguei, intrigada. 

"Ora, para leres o tempo!" - disse-me, levemente indignado, como se a pergunta fosse perfeitamente dispensável.

"Mas... se não tem ponteiros - nem tão-pouco números - como é que «leio» o tempo?"

"Alcochete", por Carlos Santos.

A verdade é que escolhemos, a cada instante, a nossa própria verdade sobre uma mesma realidade. A realidade é de todos, mas a verdade, essa, é só nossa. 

Nem toda a gente consegue ler o tempo escondido em relógios sem ponteiros, nem toda a gente lhes consegue captar a essência.

Há pessoas, no entanto, capazes de captar a essência que nós não vemos. Roubam a alma das coisas e das gentes. Mas, ao invés de a guardar isolada, replicam essa alma e aprisionam-na na eternidade.

Num mundo em que todos nos transformamos em fotógrafos - (só) porque, aqui e ali, capturamos uma imagem - há um misticismo, algo de sobrenatural - feitiçaria, talvez - que distingue os verdadeiros roubadores de almas.

Fotografia de Cardeli, cujo talento para roubar almas pode ser confirmado aqui.

Dentro desta gaveta, entre outros, guardo carinhosamente o Alfaiate Lisboeta. Não é fotógrafo (ou pelo menos nunca se intitulou como tal) e, tecnicamente, existem profissionais qualitativamente superiores. 

Muito se fala sobre ele - extraordinaria ou razoavelmente bem, mal ou muito mal - contudo, longe dessas discussões, o que me interessa no Alfaiate é que ele retrata almas. Rouba-lhes a essência e replica-a, mesmo quando mais ninguém a vê. E, no seu feitiço, transforma a banalidade em magia. Nem sempre compreendo essa magia, mas o facto é que ela é a verdade. A verdade dele sobre uma realidade de todos.

Se o Alfaiate gostaria de fotografar Mr. Doe? Claro. Só não sei como lhe roubaria a alma.


"Bem, menina, o tempo é seu. Como quer que eu saiba como o irá ler?". E afastou-se.

Comentários

  1. Os meus parabéns, Yonara.
    Na realidade é um belo texto, com profundidade e sensibilidade.
    A verdade (essa que é só minha), é que me senti dentro da história, estranhamente ligado a um sr. Doe que não conheço, mas parece conhecer-me a mim, como ninguém.
    Eu não o li. Senti-o.
    E isso vale mais que mil verdades.
    Francisco Teixeira

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    1. Algo me diz que vocês se iriam dar muito bem, Francisco.

      É um homem peculiar (diria "odd", se o Inglês me fosse permitido), este John Doe, mas na sua estranheza encontra-se algo de muito interessante. É pena que ele não saiba...

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