O verbo mais tramado


Totalmente absorta na magia da minúscula chama, pensava para mim mesma e perguntava-me quanto tempo iria a vela demorar a arder por completo. Estava alheada.

Quando tornei a mim, olhei ao redor e apercebi-me que milhares de outras velas acompanhavam a minha, numa sincronia perfeita.

E ali, naquele momento, em pleno Santuário, compreendi que acreditar é - senão o mais - um dos mais belos verbos de toda a gramática. 

Então entendi que - em cada sacrifício que não compreendo, em cada oração silenciosa, em cada choro emocionado, em cada peregrino chegado, em cada ritual sabido de cor - a fé humana é avassaladoramente comovente e incrivelmente poderosa

Se fosse possívelporventura, medir a potência daquele instante em watts naquele mar de gente, seria certamente o suficiente para iluminar toda uma cidade. 

Um poder que tem tanto de unificador quanto de desagregador.

Peguemos na fé, então, e olhemo-la de perto. Mais perto ainda. Um pouco mais. Exacto! 

Na verdade, se subtrairmos à fé qualquer religiosidade ou misticismo, o que fica é o seu núcleo mais elementar, o verbo acreditar

E depois de escrever isto realizo que acreditar não é para qualquer pessoa. Para além de ser, provavelmente, o verbo mais belo de toda a gramática é, provavelmente, também um dos mais tramados - principalmente para quem, como eu, conjuga com frequência o verbo questionar

Ora aqui é tentador aplicar o cliché "precisamos de acreditar mais", mas seria uma mentira piedosa. Nós não precisamos de acreditar mais [julgo até que acreditamos demais]. Nós precisamos de acreditar melhor [nos nossos projectos, nos compromissos assumidos, nas promessas feitas, nas competências dos outros, nos elogios recebidos, em dias melhores].


Não temos que ir a Fátima para perceber isso. Mas se formos, percebemos ainda com mais clareza. Lá encontramos todo o tipo de pessoas: as que vão para rezar, as que vão para conviver, as que vão por turismo, as que vão para acampar, as que vão para conversar, as que vão para calar quem vai para conversar, e muitas outras. 

E ainda assim, apesar de tamanha diversidade, um ponto é comum: acreditar. Ninguém vai a Fátima se não acredita em algo que converge para aquele local.

Ninguém poderá afirmar que o casal que estaciona no parque a auto-caravana [que mais parece uma casa] e monta uma mesa onde se senta para passar o dia a falar com os vizinhos da caravana ao lado não acredita tanto como quem está no recinto a orar ou como quem enche as lojas para comprar souvenirs para os que ficaram.

Não se trata de acreditar mais, trata-se de acreditar melhor. John Doe acreditava mais do que ninguém nas suas competências aplicadas às funções que desempenhou, e não é, no entanto, particularmente versado ou talentoso.


Acreditar melhor implica encontrar a bússola e o farol que cá temos dentro para iluminar o mundo a partir da alma. 

Talvez fizesse sentido as organizações consignarem parte das 35 horas anuais de formação a uma espécie de boost da fé humana, sem religiosidades nem misticismos, para que melhor se conjugue na prática o verbo acreditar.

Mais do que acreditar num Deus que temos, faz falta acreditar no Deus que somos. E é por isso que acreditar é o verbo mais tramado do mundo. 

Talvez seja um talento.

Comentários

  1. Lindo!
    Estavas a pensar em mim decerto. Acredito demais e, é realmente tramado!

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  2. E esse "Acreditar", que não é para todos, também lemos os limites da dimensão humana. Um texto notável. Parabens.

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