Zonas de rebentação


Against all odds, o mar pela objectiva de João Monteiro

Como crianças com livros de colorir, vivemos assombrados por um dilema que tanto nos assusta como encanta: respeitar os limites e pintar apenas as áreas interiores do desenho ou ultrapassá-los e extravasar toda a magia de pintar livremente. Na vida, como nos livros de colorir, uma regra parece comum: não permanecer em cima do limite.

E eu não me apercebi que estava em cima desse limite - ou pelo menos não com esta clarividência - até entrar no avião. Sentada no Boeing 777, senti a minha alma tão pesada quanto ele. Reactiva com tudo e todos, talvez a exagerar na gravidade de coisas poucas, dramatizando mais do que o necessário nos últimos tempos. 

Fiz uma reclamação no avião. Merecida, continuo a achar, mas talvez não a tivesse feito noutra altura qualquer. Depois de receber a cópia do que escrevi no livro, reclinei para trás o meu assento e ouvi Adele. Chorei de cansaço. Só então me lembrei da frase que me foi dita de manhã a caminho do aeroporto, e repeti-a vezes sem conta na minha cabeça. "Atingiste o teu limite".

Não sei bem o que acontece quando atingimos o nosso limite, nem o que devemos fazer nessa altura. Mas sei que não é uma zona para se estar, pelo menos é o que se diz por aí.

Com os olhos semi-cerrados e uma lágrima tímida à espera de ser solta, pensei em John Doe, e naquele dia em frente ao Tejo.

- «Dizem que o mar Português é muito bravo!», disse ele, os olhos tão azuis e largos que pareciam reflectir o que descrevia.

- «Mas aqui não é o mar, é rio. O Rio Tejo.» Tão eu, sempre afoita.

- «Eu sei. Como o Thames, mas mais esguio e apressado. Prefiro a calma constante do rio à rebeldia agitada do mar.»

Na altura pensei em dizer que a calma do rio não é verdadeira, que ele só corre certo por causa dos limites que as margens lhe impõem. Mas não disse. Disse-lhe apenas que o perigo do mar está geralmente na zona onde as ondas rebentam, uma espécie de limite que o mar teima em atravessar.

- «A zona de rebentação é perigosa, não devemos permanecer dentro dela.»

- «Porquê?»

Não previ a pergunta e, obviamente - bem feito para mim -, não consegui dar resposta. Pelo contrário, ricocheteei para mim mesma a pergunta: sim, porquê?

A nossa alma está cheia de pontos de rebentação, zonas turbulentas onde se misturam ondas feitas de sentimentos diferentes, por vezes de sentido e direcção contrários, chocando e criando pequenos caos. Apressamo-nos a recuar, mantendo-nos dentro do limite, ou a avançar, para rapidamente passar para o outro lado.

Claro que não vamos - não podemos - permanecer para sempre nas nossas zonas de rebentação. Até porque, mais do que perigosas, elas são dolorosas, atirando-nos de um lado para o outro de forma violenta. Mas, uma vez ou outra, vale a pena demorarmo-nos um pouco mais. Afinal, é também aqui que aprendemos as maiores lições sobre reequilíbrio, resiliência e reinvenção. Ser elástico e resistir à pressão das ondas, desconfio, também deve ser um talento.

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